Televisão, imagem da besta ou reflexo?
Ela nos obriga a ver no espelho nosso lado feio
Apocalipse 13
E vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.
E a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a sua boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e grande poderio.
E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.
E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem poderá batalhar contra ela?
E foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois meses.
E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua, e nação.
E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.
Se alguém tem ouvidos, ouça.
Se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada, necessário é que à espada seja morto. Aqui está a paciência e a fé dos santos.
E vi subir da terra outra besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro; e falava como o dragão.
E exerce todo o poder da primeira besta na sua presença, e faz que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta, cuja chaga mortal fora curada.
E faz grandes sinais, de maneira que até fogo faz descer do céu à terra, à vista dos homens.
E engana os que habitam na terra com sinais que lhe foi permitido que fizesse em presença da besta, dizendo aos que habitam na terra que fizessem uma imagem à besta que recebera a ferida da espada e vivia.
E foi-lhe concedido que desse espírito à imagem da besta, para que também a imagem da besta falasse, e fizesse que fossem mortos todos os que não adorassem a imagem da besta.
E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita, ou nas suas testas,
Para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu nome.
Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.
O cartaz na Avenida Marginal do Tietê, em São Paulo, é taxativo: 'Televisão, imagem da besta'. Vindo de uma igreja evangélica, não é de estranhar, em sua grandiloqüência retórica. Também não é de espantar, a não ser pela impropriedade — no que tange, exatamente, à propriedade.
Que nós telespectadores saibamos, o capeta só foi dono da telinha no início de 2000, quando fez uma aparição espetacular no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna/Guel Arraes, embora tenha perdido o embate final para Jesus e Nossa Senhora, como se lembram todos. No mais, a televisão é uma antiga seara de Deus, cultivada por todos os credos ou, ao menos, por todos aqueles capazes de financiá-la. Se a TV fosse reino do demônio, não haveria de merecer o bendito dinheiro do bispo Macedo, do apóstolo Hernandez e de tantos outros abnegados da fé, que investem em emissoras país afora apenas para propagar a palavra do Senhor, não é mesmo?
Mas vamos ter boa vontade com o criador do cartaz e conceder-lhe uma leitura mais figurada para seu slogan. Sim, a televisão pode ser a imagem da besta. Não de uma, mas de inúmeras bestas, verdadeira fauna de inconseqüentes, quando não delinqüentes, que poderiam usar o mais poderoso meio de comunicação já criado para promover a informação, a educação, a cultura e a cidadania das pessoas, mas preferem poluir seus sentidos e sua consciência com o exato oposto. São essas bestas que dão ao público 'o que ele quer', que 'respeitam a vontade do telespectador' e que nos sugerem desligar o televisor quando discordamos do que elas consideram o nosso gosto e a nossa vontade.
A televisão é a imagem da besta que confunde vulgaridade com entretenimento popular. Que erotiza a programação em horários em que é alta a audiência infantil, que põe no ar crianças se fazendo de adultas e que depois, hipocritamente, se diz chocada com as decorrências dessa leviandade criminosa, como a pedofilia ou a gravidez adolescente. A TV é a imagem da besta que explora a violência na tela sob todas as formas e depois tira o corpo fora, quando o banditismo explode e a sociedade, aparvalhada, busca os culpados por sua insegurança. A televisão é a imagem da besta que presume a incapacidade do povo de apreciar o melhor, e insiste em lhe dar o pior. Que prefere investir nessa infinidade de programas de mexericos e futilidades, cada vez mais iguais entre si, irmanados na falta de assunto e na supervalorização do que não tem valor algum. Que prefere incentivar a idiotice de tantos shows de auditório em vez do bom telejornalismo ('custa muito caro'), da música de qualidade ('não vende disco'), do documentarismo inteligente ('é chato') e da melhor dramaturgia ('é muito sofisticada').
A televisão, por fim, é a imagem da besta que assiste a tudo isso e não apenas aceita como gosta e aplaude, sem perceber o quanto se degrada. Porque, assim como o Criador nos fez a sua imagem e semelhança, a TV também pretende ser nosso espelho. E não adianta dizer que é o diabo que aparece nele, quando o que ele reflete é o lado mais feio de nossa própria cara.
Gabriel Priolli escreve em ÉPOCA na quarta semana do mês